Perfil | Julia Pereira

Hoje apresentamos um perfil de artista um pouco diferente dos que costumamos publicar por aqui, já que para ilustrar a entrevista da artista Julia Pereira, trazemos algumas imagens que fizemos durante uma visita ao seu ateliê na Barra Funda, em março deste ano.

Conhecemos o trabalho da Julia em 2020, por indicações de amigos. Em uma das raríssimas saídas de casa que ocorreram durante a pandemia, visitamos seu ateliê temporário, que ficava em um imóvel vazio de familiares da artista. Desde então, passamos a acompanhar seu trabalho.

Julia Pereira nasceu em 1991 em São Paulo, onde vive e trabalha. Em 2018 graduou-se em Artes Visuais no Centro Universitário Belas Artes São Paulo com o prêmio de melhor aluna e, em 2020, realizou Pós-Graduação em História da Arte –Teoria e Crítica na mesma instituição. Embora a pintura seja o foco de sua produção, a artista tem a fotografia, o desenho e o vídeo como aliados em seu processo, que parte da sua esfera de relações afetivas. Estas relações são trazidas para a pintura de memórias e sensações corpóreas ativadas por estas mesmas memórias, resultando em construções e desconstruções imagéticas que dialogam com questões de seu próprio corpo, pulsões, desejos, exorcismos e pela busca da captura do momento presente.

Retrato de Julia Pereira. Foto: © Fernando Gomes

Retrato de Julia Pereira. Foto: © Fernando Gomes

Você pode contar um pouco sobre sua formação e trajetória? Como se deu a escolha de trabalhar como artista?
A escolha, embora muito difícil de bancar na época, era simples. Ser artista ou ser artista. Se eu não o fizer, estaria sendo desonesta comigo mesma e isso aos poucos, me tiraria o espírito. Me formei em Artes Visuais no Centro Universitário Belas Artes São Paulo em 2018. Fui consagrada com o prêmio de Melhor Aluna do curso, o que me garantiu o direito de cursar a Pós-Graduação em História da Arte - Teoria e Crítica com 100% de bolsa. Contudo, antes de me formar, estudei Design de Moda em Amsterdã, fiz alguns estágios em ateliê de costura e pintura também. 

Ainda lido com o viés subjetivo das minhas relações íntimas e como meu corpo reage às memórias e consequentemente, meu traço no suporte também. Para mim, o pintar é o reviver e é também uma tentativa de permanência e de existência.
— Julia Pereira

Qual sua pesquisa atual e que trabalhos você tem desenvolvido nos últimos tempos?
Ainda lido com o viés subjetivo das minhas relações íntimas e como meu corpo reage às memórias e consequentemente, meu traço no suporte também. Para mim, o pintar é o reviver e é também uma tentativa de permanência e de existência.

Quando não estou pintando, faço desenhos de observação, resgato alguns passos de ballet ouvindo música clássica no meio do ateliê, ou brinco com a linguagem fotográfica para me oxigenar um pouco, pois sempre fico muito cansada após uma sessão de pintura.

É difícil falar dos trabalhos que venho desenvolvendo, pois ainda estou submersa neles. Mas posso dizer que estou lidando com um vazio na tela, uma abertura na pintura, que é nova, desconhecida. Parece que a pintura está pedindo para respirar e para ser mais aberta, depois de tantos embates sufocantes. Com isso, me vem a questão de suspensão do tempo na tela e a questão do fazer, de não matar o trabalho. Segurar o fim.

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Quais fatos, trabalhos ou experiências mais relevantes/marcantes contribuíram ou afetaram de alguma forma a sua trajetória? 
Lembro quando fiz minha primeira pintura na escola aos 16 anos. Eu nunca havia pintado antes e um professor, o querido Mr. Richard Keys, sugeriu que eu fizesse um auto-retrato. Arranjamos uma chapa de madeira, que deveria medir aproximadamente 1,5 x 1,5 m. Quando terminei o quadro, estava tão realizada e empolgada que queria pintar uma tela ainda maior. A próxima foi de 2 x 2 m, um outro auto-retrato, espelhado, colorido, mágico e que até foi vendido sem querer. Foi o começo de tudo.

Tenho várias memórias de exposições e obras de arte que me chacoalharam e que trago comigo em algum grau, até hoje... 

Quais foram essas exposições e obras que te marcaram?
Algumas delas são: Anish Kapoor em Londres, em 2011, durante uma viagem da escola: um canhão que expelia com um estrondo uma matéria vermelha, espessa e agressiva, viva, na parede branca da instituição ("Shooting into the corner") e  o bloco de matéria que deixava um rastro no espaço, nos batentes das portas "White sand, Red millet, Many Flowers" (1982); Os retratos e autorretratos de Lucian Freud ao vivo são emocionantes. Fico com o "Hand Mirror on Chair" (1966) na cabeça; As telas de Francis Bacon; sentir a força, a presença que elas têm e chorar por estar junto delas e sair catatônica depois. Poderia nomear várias… "Painting" (1946), "Study For Red Pope" (1962), "Second Version of Triptych 1944" (1988); ver o quadro "The Kiss" (1908) de Gustav Klimt e os retratos de Egon Schiele na mesma instituição, em Viena, no mesmo dia. E recentemente adorei ver de perto "Pássaro" (2016) de Laura Lima e as pinturas em papel de Tracey Emin & Louise Bourgeois no FAMA em Itu.

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Quais são suas perspectivas como artista? Como se vê daqui um tempo? Tem algum projeto que deseja realizar mais a longo prazo? 
Possuo muitas perspectivas! Sinto que o trabalho que faço será e durará para a minha vida toda. Daqui um tempo eu me vejo dedicando muito mais tempo à criação, leituras, estudos e trocas com meus artistas colegas. Quero expandir o meu tempo de ateliê e curtir o vazio meditativo também. Gostaria muito de realizar um mestrado e residência internacionais, além de realizar alguns projetos de instalações que venho pensado ultimamente.

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Que mulheres (artistas, escritoras, familiares e figuras públicas) foram/são influências e fonte de inspiração? 
Essa é uma lista em constante crescimento! O contato com as diversas linguagens da arte vieram em grande parte na infância, através da minha mãe, tias e avós. A estilista Elsa Schiaparelli foi alguém que eu admirava muito quando adolescente, especialmente após ter lido "A Shocking Life". Durante a faculdade eu tive contato com professoras incríveis, de fibra, como a gravurista Helena Freddi, Katia Salvany e Adalgisa Campos. Autoras como Isabel Allende, Clarissa Pinkola Estés e Virginia Woolf são mágicas. Posso dizer que as artistas Camille Claudel, Tracey Emin, Cecily Brown e Maria Martins orbitam a minha cabeça de tempos em tempos.

O que você faz para se motivar em períodos de baixa/desânimo/bloqueio criativo?

Os períodos de baixa me deixam um pouco nervosa e angustiada, pois é contra minha natureza ficar parada ou presa (ou, sentir que não estou indo para frente). Toda vez eu preciso relembrar que essas fases são necessárias, naturais e construtivas. Posso dizer que a cada dia que passa eu entendo melhor como lidar com esses períodos, pois preciso viver para pintar, mas também, pintar para viver.
— Julia Pereira
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Quais foram os maiores desafios enfrentados na sua trajetória até agora?
Aprender a lidar com as instabilidades do ambiente; os caldos, turbulências e até os marasmos cíclicos da vida do artista, dentro e fora do ateliê.

Como é um dia normal na sua rotina?
Os dias têm a sua variabilidade. No geral eu gosto de chegar no ateliê, sentir o cheiro do lugar, passear pelas pinturas, passar a mão nas telas lisas que estão preparadas, esperando serem iniciadas. Às vezes eu chego (no ateliê) quente e pinto por necessidade, outros dias por desejo ou por ambos simultaneamente. Pinto com urgência e energia ou pinto sem força mas ainda sim com intenção. E tem dias em que eu chego fria e preciso dançar no meio de tudo e fazer desenhos de observação do meu corpo primeiro.

Como você enxerga o papel da sua atuação como mulher artista no cenário artístico atual?
Difícil responder, não sei se minha resposta está pronta. Eu penso no meu papel primeiramente em relação a mim mesma, podendo ser Julia, mulher e artista, para mim e para o meu trabalho. O meu poder feminino e consequentemente a minha sensibilidade, honestidade que levo para o ateliê e para fora dele vêm daí. O cenário atual é grande,  e eu sou apenas uma, dentro de um todo muito potente.

Penso no meu papel primeiramente em relação a mim mesma, podendo ser mulher e artista, para mim e para o meu trabalho. O meu poder feminino e consequentemente a minha sensibilidade e minha honestidade, que levo para o ateliê e para fora dele, vêm daí. O cenário atual é grande,  e eu sou apenas uma, dentro de um todo muito potente. 
— Julia Pereira

Quais foram os impactos e desdobramentos da pandemia para você nos âmbitos profissional e emocional? 
O primeiro impacto foi a mudança de ateliê; eu estava com uma rotina e espaço fixos, que me faziam bem e voltei a pintar em casa. Não poder mais habitar o ninho criativo que eu havia construído me desestabilizou. A redução do espaço e das horas de contato fizeram minha pintura ficar apertada, rígida e menor (em tamanho e frequência). 

Em minha cabeça a necessidade de viver, sentir e me relacionar era enorme e parecia que eu nunca mais iria conseguir. A ansiedade aumentou, assim como a sensação angustiante de que o momento não teria fim. Eu não enxergava uma saída no futuro próximo e o tempo parecia interminável. Em algum lugar resgatei forças para elaborar a pesquisa e apresentar o meu artigo da Pós-Graduação. O resultado me traz muito orgulho, a pesquisa é linda.

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Quando nos conhecemos você estava em ateliê temporário e depois te visitamos em seu novo espaço, na Barra Funda. Você pode contar um pouco sobre essa mudança? Acha que os espaços influenciaram de alguma forma o seu trabalho?
Até antes da pandemia, eu estava usufruindo de uma antiga casa da minha tia-avó. A casa era de concreto e vidro, suspensa no terreno em declive, com uma piscina embaixo. Meu espaço de pintura era no salão do subsolo da casa, o que me deixava perto da água da piscina e do jardim, mas também junto às sombras dos cômodos desocupados. Penso que esse lugar possa ter influenciado um pouco a tonalidade das pinturas; tons quentes porém sombrosos e fechados eram frequentes e os tons aquáticos começam a querer aparecer na tela.

O estúdio novo é claro, amplo e possui uma janela espetacular. Sinto que a luz natural é um dos fatores que influencia a abertura das cores e da composição na tela, assim como a generosidade do espaço, que me ajuda a tomar distância dos trabalhos.

Você comentou sobre sua pesquisa e seu artigo de pós graduação. Pode contar um pouco sobre?
O artigo explora o conceito do espírito inerente do artista-pintor e esclarece como a formação da pintura e seu processo específico podem alcançar verdades próprias. Para a pesquisa eu considerei certas noções da filosofia da arte, para discutir elementos como matéria, expressão, percepção, significado e como estes podem fazer com que a coisa artística opere segundo suas próprias leis, que fogem do controle da criação intencional. Com essa base eu abordo o gênero do Retrato, a começar por pinturas próprias, pontuadas com obras de Diego Velázquez e Lucian Freud, para estabelecer a ligação psíquica entre o artista e o conteúdo formativo da pintura de retrato.

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Qual o seu entendimento sobre a necessidade e importância de se ter iniciativas voltadas exclusivamente às mulheres e outros grupos minoritários?
É importante resgatar vozes que precisam e têm o direito igual de serem ouvidas e construir oportunidades para múltiplos diálogos florescerem.

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