Dançando na margem

 
 

Ao final de seu texto The Carrier Bag Theory of Fiction [1], parte do livro Dancing at the Edge of the World (1989) – título traduzido livremente e adaptado para nomear essa exposição–, Ursula K. Le Guin nos conta que a ficção científica, por mais engraçada ou fantasiosa, é uma tentativa de descrever o que de fato está acontecendo numa determinada época, o que as pessoas realmente fazem e sentem, e de como elas se relacionam com o mundo.

As obras aqui reunidas estão informadas por reflexões sobre o agora, consequência do nosso passado e prenhe do nosso futuro e, várias delas, podem ser consideradas ficções descritivas da nossa realidade. Concebidos em sua maioria entre 2020 e 2023, ou seja, num período pandêmico ou pós-pandêmico, os trabalhos estão informados de um imaginário carregado de uma possibilidade de não-existência ou de um não-futuro.

Mitologias cibernéticas e referências de filmes de ficção científica estão no centro da prática de Darks Miranda. Em Phase IV (2022), a artista busca recriar uma superfície imaginária através do efeito corrosivo da tinta sobre o isopor, que dá forma ao que se assemelha a um relevo esculpido pelo tempo em um planeta outro ou quem sabe um fóssil de uma extinção planetária.     

Já a obra A curva do sonho (2023), uma planta-criatura-alien com tentáculos, que parece estar prestes a se deslocar pelo espaço, foi concebida para a exposição Tamagotchi Balé, que esteve em exibição no Centro Hélio Oiticica, na qual, à convite da artista Anna Costa e Silva, Darks Miranda concebeu formas baseadas em vídeos de videogames 3D. A partir desses  exercícios de transformar imagens em algo tridimensional e vice e versa, podemos pensar sobre as nossas trocas com as telas dos dispositivos, para as quais somos puxados para dentro a impelidos a consumir imagens e informações constantemente. Vivemos em uma simbiose com estes artefatos que – em um futuro não tão distante – pode nos transformar de maneiras que ainda escapam ao nosso imaginário.

Criaturas-plantas com tentáculos estão também presentes nos trabalhos de Camila Martins, que tem uma produção inspirada diretamente pelo ambiente marítimo, de onde suas esculturas parecem emergir, vindas de outros tempos. De certa forma, essa produção resulta da solidão pandêmica e da observação da mudança na paisagem de Florianópolis, onde a artista nasceu e vive e onde as praias parecem ser consumidas pouco a pouco pela cidade ou pelo mar, que avança devido à revolução climática. Diante de catástrofes, o imaginário do fim aparece como uma das únicas formas de superar as diferenças e dificuldades as quais nos colocamos.

Em um  cenário pós-apocalíptico, surgem então novos seres, novas vidas, novas raízes e possibilidades de vida. Elementos de plantas aquáticas e flores carnívoras, presentes em diversas das esculturas de Martins, fazem alusão à sobrevivência e à defesa em um ambiente inóspito com poucos recursos e nutrientes. Aparentemente imóveis, porém sempre em alerta. Talvez não tenhamos todos nos comportado como plantas-carnívoras nesses últimos anos? 

Ferrão (2019), de Ayla Tavares, é um objeto que olha para si mesmo. Solitário, ele remete a algo que não conseguimos bem identificar e que nos escapa, mas que lembra um ser vivo prestes a tecer um casulo. Ao mesmo tempo, ele nos lembra do ponto de partida de uma espiral, símbolo de evolução e movimento ascendente, evocando a ideia de voltar-se para si como ponto de partida para uma jornada de crescimento e transformação. 

Esta linha, que cresce continuamente na direção de seu próprio centro ou para fora de si mesmo, também está presente em Spiral ditch (2022), de Raphaela Melsohn, que tem como parte de sua prática a materialização de anotações e processos. Muitas vezes, a artista constrói maquetes ou estudos em cerâmica que representam a construção de uma linha de pensamento que se desdobra em uma espécie de fluxo contínuo, que permeia diversos trabalhos da artista. 

Espirais e formas que remetem à fluidez e movimento também estão presentes no trabalho de Ayla Tavares. Em Foz (2023) da série Alfareria del Agua, a artista investiga fluxos das águas e as topografias criadas por eles através dos tempos. Buscando incorporar aspectos dos locais de onde estes são criados ou inseridos, o trabalho se relaciona também com a cidade do Rio de Janeiro, e a sua proximidade com a água, seja ela do mar, seja ela derivada dos inúmeros rios que correm invisíveis por debaixo da cidade. 

A água também está presente na pintura sem título de Arorá, da série Quedas d'água. Neste trabalho, a artista nos coloca diante do acúmulo da matéria e cor em uma superfície bidimensional. Diferentemente de seus trabalhos escultóricos, provenientes de um procedimento arqueológico de seu próprio quintal, as abstrações desenvolvidas sobre tela buscam ser autônomas, deixando em aberto às possibilidades da pintura em uma busca por "formatar um híbrido espacial, temporal e imaginativo". E, embora busque evitar associações e identificações diretas, o gesto da mão que acumula matéria pictórica pode, por vezes, evocar seres de outros tempos, ou ainda, uma habitação móvel ou de esconderijo para a vida marinha.

Na série Dutos, Raphaela Melsohn investiga contenções, conexões, passagens e fluxos entre fluídos, seres e corpos que habitam o planeta. Em Duto Cabana, a cerâmica se acomoda sobre uma estrutura de metal com  forma de um triângulo. Para além da geometria, a forma simbólica do triângulo, de tríade divina, de passagem, do feminino, é também um container, uma cabana – construção primordial para abrigo – explicitando a relação do corpo com o espaço construído, e como podemos ser contidos e protegidos por ele.

Já no trabalho de Vivian Caccuri, o triângulo aparece como síntese do sentimento humano. Com uma pesquisa teórica (e) artística acerca da nossa percepção e da distinção entre música, ruído, sons da natureza e o silêncio, nas séries Tríade e Triângulo, a artista parte de sua pesquisa sobre o triângulo, instrumento musical carregado de simbologias e significados que, se afastando do âmbito do divino ou sagrado, passa a ser um objeto escultórico que conta uma história, um emaranhado que remete por vezes às vibrações de ondas sonoras ou às tramas de um tecido, ou ainda a tentáculos de um ser quase-vivo que se prolonga e se propaga pelo tempo como o som. 

Em Poente com tramas, Ayla Tavares tece emaranhados e superfícies têxteis com argila. Essas superfícies parecem se mover através de algum estímulo ou vibração, assim como Descompressão II, de Caccuri, que se baseia no modo como o corpo pode vibrar e se deixar inundar pela vibração das ondas musicais. 

Em um fluxo improvisado com seres pós-apocalípticos ou movimentos espirais que voltam-se a si mesmos, as obras aqui reunidas nos convidam a tecer ficções sobre o presente e possíveis futuros. Talvez tenhamos que estar perdidos para encontrar um novo mundo pois "a dança da renovação, a dança que criou o mundo, sempre foi dançada aqui no limite das coisas, na beira do abismo, na costa nebulosa." [2]


[1] Ursula K. Le Guin, The Carrier Bag Theory of Fiction, 1989.

[2] “To find a new world, maybe you have to have lost one. Maybe you have to be lost. The dance of renewal, the dance that made world, was always danced here at the edge of things, on the brink, on the foggy coast.” – Ursula K. Le Guin, The Carrier Bag Theory of Fiction, 1989.


Dançando na margem do mundo

Curadoria e texto: Paula Plee
Edição e revisão: Ana Roman
Produção: Victor Lacerda e Paula Plee
Montagem: Thiago Machado
Assistência geral: Matheus Almeida

Agradecimentos: Equipe Ateliê Vivian Caccuri, Carol Carreteiro e Vivian Caccuri, A Gentil Carioca, Galeria Athena, Marli Matsumoto Arte Contemporânea, Projeto Vênus, Galeria Nara Roesler, Carpintaria, Fábrica Bhering.

Um agradecimento especial às artistas e a todos os amigos que fizeram parte do processo de desenvolvimento dessa exposição. Sem vocês não seria possível <3