Revisionismo à francesa

Elles font l'abstraction,  exposição em cartaz até amanhã, 23 de agosto no Pompidou, tem um objetivo ambicioso: propor uma nova narrativa da história da arte abstrata, jogando luz em artistas mulheres que tiveram pouca visibilidade fora de seus países de origem e foram relegadas do cânone da história da arte.

A mostra é dividida em pequenas salas e o percurso é construído de maneira temporal, começando com Georgina Roughton, pintora nascida em 1814 nas Ilhas Canárias, na Espanha, mas naturalizada de Londres. Já de início percebe-se a influência do espiritismo e da teosofia  de Helena Blavastky através de textos e obras, vertentes das quais compartilhou Hilma af Klimt. Roghton apresentou suas aquarelas abstratas em uma mostra em Londres em 1871, muito antes Kandinsky ou Delaunay.

Hilma Af Klint, The Swan, No. 16, Group IX/SUW, 1915.

Hilma Af Klint, The Swan, No. 16, Group IX/SUW, 1915.

O pódio da abstração parece ser um lugar disputado na história da arte, com Kandinsky saindo à frente e mantendo-se intacto até pouco tempo, quando o trabalho de Klimt foi lido como tal. Enquanto vivo, o pintor russo fazia questão de se vender como o primeiro pintor abstrato – ele entendia muito bem o poder do marketing pessoal –, escrevendo inclusive para seu galerista em Nova Iorque que sua Composição Numero V era de fato a primeira pintura abstrata da história. Porém, no constante processo de reestruturação da narrativa canônica da história da arte, a curadora Christine Macel reconhece a obra de Georgina Roughton como tal.

Georgiana Houghton (1814-1884), The Sheltering Wing of the Most High, 1862, aquarela e guache sobre papel, 23×31.5cm, Collection Victorian Spiritualists'Union, Melbourne.

Georgiana Houghton (1814-1884), The Sheltering Wing of the Most High, 1862, aquarela e guache sobre papel, 23×31.5cm, Collection Victorian Spiritualists'Union, Melbourne.

O que parece ter mudado é o fato de que trabalhos associados ao misticismo e atividades mediúnicas começarem a ser aceitos como arte. “Espiritual ainda é uma palavra muito suja no mundo da arte ", disse o curador Maurice Tuchman ao New York Times em 2013, na ocasião da exposição de Klimt no Moderna Museet, em Estocolmo. 

Joan Mitchell, Mephisto,1958.

Joan Mitchell, Mephisto,1958.

A dicotomia entre racionalização-abstração-pura-masculino e misticismo-abstração-secundária-feminino fica clara quando nos confrontamos com os pré conceitos e hierarquias. Parece-me uma desculpa muito esfarrapada afirmar que pintoras como Georgina ou Hilma eram menos artistas porque seus drives mais potentes eram transcendentais – soa raso e funcional colocar a racionalização típica dos manifestos acima da fé e do culto ao oculto. Na verdade, o campo "puro" e das ideias o qual Kandinsky e seus colegas buscaram incessantemente pode ser associada à ideia de platonismo (uma das raízes conceituais do cristianismo) enquanto Roughton e Klimt, que se diziam apenas veículos de outros seres superiores, à ideia de paganismo, e por isso mesmo, inferiores, quando analisadas sob o prisma das sociedades ocidentais monoteístas e patriarcais. 

Saloua Raouda Choucair, Fractional Module, 1947-1951. Cortesia Galerie Saleh Barakat  © Saloua Raouda Choucair Foundation © All rights reserved

Saloua Raouda Choucair, Fractional Module, 1947-1951. Cortesia Galerie Saleh Barakat  © Saloua Raouda Choucair Foundation © All rights reserved

Em uma tentativa de afastar a história apresentada do cânone ocidental, a mostra é bem sucedida ao inserir nomes importantes até então reconhecidos localmente ou circunscritos a movimentos pontuais. Existe uma tentativa de tratar com igual importância todas as mais de 100 artistas presentes, salve algumas exceções, como o de Nathalia Gontcharova, que foi uma das principais figuras da vanguarda russa, atuando como pintora, escritora e figurinista (tanto nas vanguardas russas quanto na Bauhaus era comum a ideia da expressão artística variada). 

Gontcharova viveu parte de sua vida em Paris e desenhou roupas para o balé de Moscou, croquis estes que estão presentes na exposição. A artista teve uma grande retrospectiva em 2019, na Tate London, tendo assim sua importância reconhecida tanto na cena russa quanto na cena parisiense. 

Sophie Taeuber-Arp, Composition, 1920.

Sophie Taeuber-Arp, Composition, 1920.

Outro nome valorizado é o de Sophie Taueber-Arp, que foi historicamente eclipsada por seu marido Hans Arp. Os dois colaboraram enquanto escultores, tendo autoria conjunta em muitos trabalhos e, recentemente, o mérito do desenvolvimento das formas orgânicas e fluidas de Hans tem sido atribuído também à Sophie, a quem o Tate London dedica uma retrospectiva que segue em exibição até outubro. 

Lygia Clark, Planos em superfície modulada, 1957. © O Mundo de Lygia Clark-Associação Cultural, Rio de Janeiro.

Lygia Clark, Planos em superfície modulada, 1957. © O Mundo de Lygia Clark-Associação Cultural, Rio de Janeiro.

A abstração brasileira também tem seu lugar na exposição do Pompidou, com uma grande sala dedicada às artistas Lygia Clark e Lygia Pape. Os Bichos de Clark aparecem como a tridimensionalização de suas colagens, e são exibidos em diálogo com estas.  As esculturas não são manipuláveis,  da maneira que a artista imaginou quando as produziu. Um vídeo, produzido pelo museu, mostra o que parece ser alguém do departamento de museologia manipulando um deles. Como brasileiros, devemos comemorar uma sala inteira dedica às duas Lygias, pois de fato é muito rara a presença de artistas latino americanas no Pompidou. Clark integrou uma exposição apenas uma vez anteriormente, em 1992, e já Pape integra pela primeira vez uma mostra na instituição. 

Lygia Clark, Bicho, Monumento a todas as situações, 1964. Centre Pompidou, Paris, na exposição Elles font l’abstraction.

Lygia Clark, Bicho, Monumento a todas as situações, 1964. Centre Pompidou, Paris, na exposição Elles font l’abstraction.

A despeito da mostra ser um panorama geral de artistas mulheres que foram importantes para as artes do final do século XIX até os anos 1980, afirmar que todas ali foram invisibilizadas em relação a seus colegas masculinos pode soar como mero reducionismo. Agnes Martin e Bridget Riley foram muito relevantes ainda em vida. Mas, de fato, quando comparamos prestígio e influIência através de retrospectivas em grandes museus, as mulheres, como de costume, ficam muito atrás. Mesmo Elizabeth Murray, por exemplo, teve sua primeira retrospectiva no MoMA em 2005, com 65 anos, apesar de ter tido uma carreira proeminente em vida. Antes dela, apenas Louise Bourgeois, aos 71 anos, Lee Krasner aos 76, Helen Frankenthaler aos 61 e Lee Bantecou aos 63 anos. Frank Stella, por exemplo, concluiu tal feito aos 34 anos e novamente aos 51. 

Lotte Jacobi, Sem título (Fotogênica), 1950, Musée Folkwang, Essen.

Lotte Jacobi, Sem título (Fotogênica), 1950, Musée Folkwang, Essen.

Os vídeos de Germaine Dulac, Mary Ellen Bute, Marie Menken e Dóra Maurer são deliciosos de assistir, transportando-nos diretamente para a realidade das artistas. A curadora de fotografia, Karolina Ziebinska-Lewandowska, faz um trabalho formidável apresentando a contribuição de Elsa Thiemann, Lotte Jacobi, Berenice Abbott, Nasreen Mohamedi, entre outras, à história da fotografia no geral. 

A mostra, porém, termina nos anos 1980, o que gera uma lacuna no entendimento da abstração produzida por mulheres. Falar sobre o passado é sempre mais fácil e passível de afirmações. A abstração em si é um assunto bem abrangente e, ao contemplar 100 anos de prática artística numa proposição tão ambiciosa, a mostra deixa a desejar, pois ao abraçar a proposta de mostra-catálogo, a exposição carece de força. O MoMA, por exemplo, fez um recorte do pós guerra ao ápice do movimento feminista de 1968 em sua exposicão dedicada à abstração produzida por mulheres, em 2017. Elles font l´abstraction poderia ter sido dividida em uma série de exposições, abarcando mais profundamente determinados assuntos, em vez de uma abordagem tão ampla que arrisca-se a ser rasa.

Há ainda muita pesquisa a ser feita e toda uma nova geração de historiadores da arte tem nas mãos a missão de contemporizar o cânone de um museu da importância do Pompidou, buscando diálogos essenciais entre artistas, sejam eles homens, mulheres, indianos ou franceses, abstratos ou figurativos. 

Fotografia de Lynda Benglis em criação (detalhe), publicada originalmente na revista Life (1970). © Henry Groskinsky © Lige Inc. – uma das imagens de divulgação da mostra no Pompidou.

Fotografia de Lynda Benglis em criação (detalhe), publicada originalmente na revista Life (1970). © Henry Groskinsky © Lige Inc. – uma das imagens de divulgação da mostra no Pompidou.